Oportunidade, risco e um golpe de sorte

Sou mais uma da minha geração. Uma geração portuguesa do início do fast-food, das consolas e do computador para quase todos; uma geração que se acostuma a ter tudo servido à mesa, que clica para aceder às notícias dos Líbano, clica para partilhar músicas do novo álbum da Bjork, que troca piadas com meia dúzia de pessoas que digitam palavras no Messenger; esta geração que vai tendo afortunados a estudarem em universidades publicas (afortunados sim, porque não é toda a gente que tem dinheiro para as propinas cada vez mais caras nem extras para compensar as bolsas de estudo que não dão para tudo, e, nem todos sobrevivem à correria das provas nacionais e à competição pela milésima duma prova de ingresso).

Apesar de todas as controvérsias que a vida me reservou, sou dada como afortunada. Estou a acabar a faculdade, sem nada em atraso nem deixei ano nenhum para repetir. De uma turma de vinte e tais que éramos, na escola primária, somos quatro a viver a vida “académica”, e mesmo assim, alguns têm de pagar por uma privada. Por amigos que tive depois disso, pouco são os que estão ainda a estudar. A falta de meios económicos e sociais encurralou-os em vidas mais puxadas e duras que a minha. Por vezes, pergunto-me como é que aqui estou. Não tenho dinheiro, não tenho pais formados, não tenho cunhas, não tenho estatutos.

Aos 23 anos, fresquinha ainda, vejo-me a estagiar num atelier de design bem formado, provavelmente num dos melhores do país. Contando como aconteceu, nem eu acredito.
Nunca fui aluna prodígio e o meu lamentoso primeiro ano de faculdade deu-me a imagem de medianazita. Muito embora tenha evoluído bastante neste cinco anos, nada me conseguiu livrar da imagem de menina sem cultura e sem meios. Não tinha um portátil; não tenho um Mac, não vou ao café “fixe”, vou ao do lado; não vou todos os fins-de-semana ao tal bar, por isso não conheço o pessoal do meio, nem o porteiro que me podia dar borlas; dou-me com pessoal das artes mas não os bajulo, dou-me com pessoas do “tecno”, mas nem por isso digo ámen a tudo o que dizem nem faço vídeos para eles.
Sou normal e sombra. Sou página cinzenta para 99% dos professores que tive – sou capaz de tratar um deles por “tu”, mas porque ele pediu. Não andei a exibir-me em frente deles com as meras capacidades que tenho, nem tão pouco fico triste com isso. Fiz os trabalhos todos, repeti-os quando eles estavam maus ou tiveram uma crítica muito negativa. Uma aluna direitinha!
Não levantei muito a voz, porque já sei que a probabilidade que tenho de fracasso é bastante maior que a do sucesso. Tive 5 anos de quase passividade parva, mas consciente que o contrário teria sido corrosivo para alguém que não tem como sobreviver no mundo do elitismo.
Já perdi a conta de quantas vezes me apeteceu mandar para um local distante alguns docentes; foram milhares de vezes que me contorci na cadeira quando vi e ouvi injustiças e discriminação. Vi pessoas a bajularem-se porque conheciam este software e aquele local onde fazem boas promoções nas impressões... É verdade que podíamos nos atrever a perguntar, por exemplo, como se punha aquele programa a funcionar, mas já cheguei a ouvi alguém a mandar ir ver ao tutorial. Enfim, lições que se aprendem quando se convive com pessoas que se mexem mais que outras, que conhecem mais coisas que outras, que galgam mais que outras, ou simplesmente porque deram um chuto de sorte.

Passei 4 anos, a pensar que percebia o que todo o mero aluno devia perceber, que era tão banal como qualquer outra. Toda a sociedade em que vivia, excepto alguns amigos com alguma auto-estima e que me tentavam puxar para cima, me convenceram que eu não era nada, que era mesmo substituível como uma peça mecânica. Mais uma aluna que desempenha o que o professor diz mas que seria degolada no mundo real como um pássaro que ainda não aprendeu a voar.


Precisei de pegar nas poupanças que tinha e viajar para o outro lado da Europa para alguém me dizer que eu até era boa no que fazia, que era uma boa técnica e tinha uma formação muito completa. Disseram que me faltava um pouco de ousadia, mas que isso era resolvido com o empenho e prática. Até para meu espanto, o meu orientador ficou espantado com a evolução. Não foi necessário falar a mesma língua para perceber as expressões deles quando mostrei o meu trabalho. Pela primeira vez, depois de muito, muito tempo, fiquei orgulhosa do meu próprio trabalho, de mim mesma; alguém estava mesmo a olhar para ele; alguém não se importava de dizer que gostava, alguém não se importava de dar opinião e ser a favor.
Voltei animada, principalmente depois de um dos professores que tive, vencedor até de concursos internacionais, dizer-se desapontado por não poder trabalhar comigo no semestre seguinte. O tipo achava que eu tinha sumo e muito para dar. Pela primeira vez, alguém me disse que podia ensinar alguma coisa.

Voltei com uma vontade que morreu pouco depois de pôr pés na faculdade. Não há empolgação, temos que tirar ideias e bons sonhos da cartola, somos mal estimulados e para quem quer manter-se activo há que aprender a manter o incentivo próprio e buscar energias em outras paragens.
Para alguém como eu, que nunca foi apaparicada ou reconhecida, é muito difícil safarmo-nos, mas principalmente achar que nos podemos safar. Se precisarmos de ajuda, só devemos desejar boa sorte a nós próprios. Se algum professor tentar ajudar não será por nós mas pelo desejo meio esgotado de fazer alguma coisa.

Vou sair da faculdade e vou sair dos registos de memória daquelas pessoas que me leccionaram durante estes anos. Espero me cruzar com eles e poder cumprimentá-los como ainda hoje faço. Um sinal de respeito que devo, pois todos me ensinaram alguma coisa, nem que seja a safar-me sozinha.

A três semanas de completar o meu estágio, sinto-me bem.
Sou respeitada e não faço serviço de escrava, trabalho em projectos tal como os outros que estão comigo. Já me disseram que surpreendi pela minha resposta rápida e a minha capacidade de desenrasque; coisa que não faria supor de uma jovem estagiária, sem experiência alguma e sem curso terminado.
Tenho consciência que consegui passar alguns colegas meus que de inicio seriam boas apostas, tenho também consciência que tenho muitas vezes na minha frente pessoas cheias de vontade e empenho, mas que, tal como eu tinha, têm o peso do «não sei se sou capaz».
Não precisamos ter boas notas, e de facto, eu não as tenho. Precisamos de algum apoio, nem que seja moral, que vá para além dum encolher de ombros, porque nem todos andamos com uma estrelinha da sorte a brilhar para o lado certo.

Posso culpar a sociedade em que estamos. Ela não cria apenas grupos, mas guetos.

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